Sobre o álcool 70° e receitas caseiras

Já ouviu falar de alguma receita caseira que sugere a adição de álcool 70° para que o produto possa ter propriedades antissépticas? Será que tem fundamento?

Se tiver preguiça de ler a parte técnica, comece a ler a partir da frase em azul e negrito

Eu comentei esse assunto rapidamente no Twitter (@ptodiscrepante), mas achei interessante detalhar em um post. Depois da época da gripe A, quem não conhecia ainda foi apresentado ao “álcool 70”. Popularmente conhecido apenas como “álcool em gel”, virou pop e altamente requisitado devido a suas propriedades microbicidas.

O “álcool 70” que a gente ouve falar por aí, técnicamente falando, é o álcool etílico hidratado 70° INPM. O termo “hidratado” indica que ele não é álcool puro, mas uma solução álcool + água, já o grau INPM representa a porcentagem em massa de álcool na solução. Dessa forma, o álcool 70° INPM possui 70% de álcool e 30% de água. Aquele que a gente compra no mercado na parte de produtos de limpeza geralmente é o álcool hidratado 92,8° INPM.

É considerado um antisséptico de poder médio, possui uma ampla gama de atuação mas não serve para fungos e certos tipos de vírus, portanto, não esteriliza. Além do álcool etílico, também são utilizados para esta função os álcoois isopropílico e n-propílico. O mecanismo de atuação se dá através da desnaturação de proteínas e estruturas lipídicas da membrana celular, inibindo a síntese e provocando a destruição das bactérias e também de vírus envelopados.

Porque 70%? Numa pesquisa rápida, encontrei fontes mencionando que, mais importante do que concentração é o tempo de atuação, mas isso considerando certa faixa de concentração. Em outras, se fala que a água facilita a entrada de álcool no microorganimo e 70% seria uma concentração ótima, na qual a atividade microbicida é mais elevada. O álcool  muito concentrado não conseguiria destruir as bactérias, mas sim desativaria de maneira não permanente. A presença da água também reduz a volatilidade, permitindo um maior tempo de contato antes de evaporar totalmente.

Uma pesquisa feita com várias concentrações de álcool e diversos tempos de exposição, considerando uma espécie de bactéria, indicou  que:

  • Álcool 100% não é um bom bactericida. Que bom, já que o processo de obtenção do álcool absoluto é bem chatinho (por formar azeótropo com água, não dá para usar destilação simples) e, por causa disso, além de ser bem mais caro, não se encontra facilmente por aí.
  • Na faixa concentração de 90-60%, a ação bactericida foi observada mesmo para tempos pequenos.
  • Na faixa de 50%, a ação foi mais fraca, demorando mais para começar a aparecer.

Portanto, a atuação eficaz é dependente de tempo e de uma concentração mínima.  É por causa desse tempo que a formulação em gel é tão comum, já que ela reduz a volatilidade.

Fontes: 

PREGUIÇOSOS, COMECEM A LER A PARTIR DAQUI

Eu resolvi escrever esse post depois de ver uma receita de caseira de limpador de pincéis cuja receita misturava, entre outras coisas, 1 copo de água com 1/4 de copo de álcool 70°. Quem faz essa exigência, provavelmente espera que o álcool 70° vá atuar como antisséptico. É a única razão que eu vejo para justificar tanta especificidade, já que o álcool 92,8° (encontrado facilmente no mercado em embalagens de 1 L) é muito mais barato e fácil de ser comprado.

Se você vai misturar o álcool com essa quantidade de água, sua concentração vai reduzir drasticamente para uns 14%. Resumindo: vai ficar tão diluído que não vai ter ação bactericida nenhuma. Forçando a barra, o álcool pode ajudar como solvente (não muito, pois a concentração é muito baixa), mas aí é melhor usar logo aquele álcool do mercado. O mesmo vale para demais receitas caseiras que o povo inventar contendo álcool 70°: a adição será inútil se o efeito desejado é o antisséptico e a diluição deixar o álcool a menos de 60%. (Lembre-se de que o álcool que você compra já vem com uma porcentagem em água, então não pode diluir muito).

Só de higienizar frequentemente seus pincéis, você já estará inibindo a ação de bactérias e fungos (não descuide da secagem!). Se, psicologicamente, não achar suficiente só isso, use esses sabonetes antissépticos ou então use o álcool sem diluí-lo (mas isso pode causar ressecamento não desejável nos pincéis de cerdas naturais). 

Ah, para constar, eu achei a receita do limpador interessante, parece ser eficiente na função de higienização. Também gosto do rapaz do vídeo, acho simpático e bom maquiador, porém, quando as pessoas começam a fugir da área de conhecimento, às vezes transmitem informações equivocadas (tipo as pessoas que juram que, se o shampoo é perolado, então ele é de tratamento). Por isso, achei que seria interessante ressaltar que esse efeito da adição do álcool 70° como antisséptico, estando ele diluído, é pura ilusão.

Atualizado: Como a receita está em vídeo e em inglês, a quem interessar, a Meire, do blog Salada Médica, se deu ao trabalho de traduzir os ingredientes e procedimentos da receita. Limpeza de pincéis de maquiagem – Solução feita em casa.

Sobre Vanessa

Engenheira química, paulista, 27 anos, apaixonada por cosméticos e maquiagens. Acredita que conhecimento nunca é demais e que as pessoas deveriam ser mais críticas com as informações que recebem.
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2 respostas para Sobre o álcool 70° e receitas caseiras

  1. saladamedica disse:

    Oi Vanessa!Excelente seu post. Vou acrescentar um link para um que fiz onde cito a receita do Enkore. O valor da receita é o de fornecer uma opção prática para a limpeza rápida, mesmo porque a assepsia de pinceis é desnecessária. Eu pensava que ele havia acrescentado o álcool esperando a conservação da mistura, mas agora que você levantou isso lembrei que ele também colocou água purificada, então possivelmente pensava mesmo que a mistura permaneceria estéril e seria "antibacteriana". Um abraço!Meire

  2. Vanessa disse:

    É bom ele ter citado esses cuidados com os ingredientes, como a água purificada. Já que essas soluções caseiras não têm prazo de validade muito longo, que se faça o possível para a conservação. Mas essa questão de ter que ser o álcool 70° e não o 92,8°me intrigou, só consegui imaginar que ele estivesse imaginado essa função bactericida.

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