Por acaso você já chegou alguma vez a ler que que a ANVISA regulamenta que a lista de ingredientes deve ser escrita sempre em ordem decrescente? Eu já vi essa informação sendo divulgada diversas vezes, mas, na verdade, a coisa não é exatamente assim, depende do tipo de produto. No caso da rotulagem de alimentos isso é verdade, tal obrigação é regulamentada pela RDC nº 259, de 20 de setembro de 2002.
“6.2.2. A lista de ingredientes deve constar no rótulo precedida da expressão “ingredientes:” ou “ingr.:”, de acordo com o especificado abaixo:
a) todos os ingredientes devem constar em ordem decrescente, da respectiva proporção;”
Por um bom tempo eu acreditei que o mesmo se aplicava a cosméticos e produtos de higiene pessoal, afinal, muita gente falava isso e fazia sentido se olharmos a maioria dos rótulos (mesmas razões falhas que levam as pessoas a classificarem os xampus pela aparência, mito que desmistifiquei aqui e aqui). No entanto, eu comecei a ver uns casos estranhos onde a ordem não fazia sentido nenhum, coisas como pantenol em primeiro na lista ou ácido salicílico no topo da lista. A listagem do sabonete líquido Actine é um exemplo disso, mesmo estando presente na concentração de 2%, o ácido salicílico é o primeiro da lista e, estranhamente, água é o último (costuma ser o primeiro).
Outro caso que me chamou a atenção é a lista do Cetaphil Loção de Limpeza:
“Butylparaben, methylparaben, propylparaben, propylene glycol, cetyl alcohol, stearyl alcohol, sodium lauryl sulfate e aqua”
Começa com parabenos, sendo que é impossível e indesejável um produto cosmético com predominância desses componentes, e termina com água, ingrediente que costuma ser o majoritário. Supondo alguma lógica, me parece ser a de ordem crescente de proporção, o oposto do que dizem ser a regra.
Ou os fabricantes desses produtos contrariavam a legislação (improvável, mas não impossível) ou o que eu imaginava saber sobre a legislação estava incorreto, algo provável já que eu não havia ido direto à fonte checar a veracidade da informação. Como eu acredito que informação nunca é demais, lá fui eu pesquisar e matar minha curiosidade.
O que diz a legislação nacional
O que eu encontrei foi que, no caso de cosméticos, a rotulagem é determinada pela RDC Nº 211, DE 14 DE JULHO DE 2005. Se você der uma lida nela, verificará que não é mencionado em nenhum momento essa obrigatoriedade de colocar os ingredientes na ordem decrescente. A parte que menciona sobre a lista de ingredientes é a seguinte:
“ANEXO IV
REGULAMENTO TÉCNICO SOBRE ROTULAGEM OBRIGATÓRIA GERAL PARA PRODUTOS DE HIGIENE PESSOAL, COSMÉTICOS E PERFUMES
(…)
14 Ingredientes/Composição: descrição qualitativa dos componentes da fórmula através de sua designação genérica, utilizando a codificação de substâncias estabelecida pela Nomenclatura Internacional de Ingredientes Cosméticos (INCI). “
Segundo a legislação nacional, os ingredientes devem ser mencionados na embalagem secundária (aquela que envolve a embalagem primária, como caixa ou envoltório) ou, na ausência desta, na primária (aquela que está em contato direto com o produto, como o pote ou a bisnaga). Não há especificação quanto à ordem de prioridade na listagem, apenas é obrigatório que a relação de ingredientes seja escrita utilizando-se a Nomenclatura Internacional de Ingredientes Cosméticos (INCI).
Antes de voltar ao assunto “ordem dos ingredientes na lista”, acho que seria interessante comentar a respeito da INCI.
Nomenclatura química e o INCI
Muita gente imagina que os ingredientes são escritos em inglês, o que não é verdade. Aliás, nomenclatura de compostos químicos é algo meio complicado, uma mesma substância pode ser escrita de mais de uma maneira, exemplos:
- ácido etanóico ou ácido acético;
- etanol ou álcool etílico;
- glicerina ou glicerol ou propano-1,2,3-triol.;
- poliamida-6 ou nylon-6 ou poli ε-caprolactama.
Existem normas para a nomear compostos e que levam em consideração a estrutura química, sendo a mais famosa e aceita padronização de nomenclatura a definida pela Union of Pure and Applied Chemistry (IUPAC). Porém, esta possui lacunas e, para moléculas grandes, nem sempre o resultado é algo, digamos, usável, sendo muitas substâncias mais conhecidas por outros nomes. Abaixo, um exemplo da molécula que ficou famosa no último ENEM:
Não existe uma nomenclatura certa e outra errada, existem variações de nome e geralmente utiliza-se a mais conhecida, a qual pode até ser nome comercial. Se até para quem trabalha na área química essa questão pode ser considerada chatinha, imagine para o consumidor comum, leigo no assunto. Não bastam as variações de idioma, para um mesmo idioma o componente pode ter vários nomes.
No caso dos cosméticos, há ainda que se considerar que o item que aparece na lista não é necessariamente um ingrediente com uma fórmula química específica, às vezes é uma mistura de vários tipos de componentes como no caso do mel, óleo mineral, extratos vegetais, etc. Para extratos vegetais, além das variações de idioma, existiria também a possibilidade de se utilizar o nome científico, complicando ainda mais a vida de quem for analisar a lista de ingredientes.
Pensando em facilitar a identificação de ingredientes utilizados em cosméticos, independentemente da origem do produto, foi desenvolvida a Nomenclatura Internacional de Ingredientes Cosméticos (INCI), um sistema de codificação de ingredientes cosméticos desenvolvido em conjunto por vários países com a finalidade de padronizar os ingredientes presentes na rotulagem de produtos cosméticos.
O INCI não possui idioma específico, seus nomes são baseados nos nomes científicos (ingredientes de origem natural por ex.), latim e inglês. No caso de compostos químicos, o nome INCI costuma diferir bastante do nome padronizado (IUPAC) ou comum. Esse sistema de nomenclatura já foi adotado ou está em fase de implementação em diversos países. Mais informações podem ser obtidas no site da Anvisa ou no site da Making Cosmetics, onde é disponibilizada uma lista parcial na qual é possível verificar a nomenclatura INCI para mais de 6 000 ingredientes.
Na prática
Voltando ao assunto inicial, já que a legislação não indica nada quanto à ordem em que os ingredientes de cosméticos devem estar dispostos na rotulagem, os fabricantes nacionais poderiam escolher a ordem que quisessem (ingredientes ativos no início da lista, alfabética, aleatória, simpatia de quem digita a lista, etc). Felizmente, apesar de alguns casos à parte como os que citei no começo do post, a maioria das empresas de cosméticos nacionais busca seguir uma ordem lógica e lista seus ingredientes em ordem decrescente.
Convém ressaltar que mesmo essa questão da ordem decrescente não é tão absoluta assim. Muita empresas se baseiam na legislação internacional, mais notadamente, a americana, regulamentada pela FDA. Segundo as normas da FDA, o ingredientes devem ser escritos em ordem decrescente de predominância, porém, algumas exceções são aceitas, são elas:
- ingredientes presentes em concentrações de até 1% podem ser escritos em qualquer ordem após a listagem de ingredientes com concentrações acima de 1%;
- independente da concentração, corantes podem ser listados em qualquer ordem após a listagem de ingredientes que não se encontram nessa categoria;
- se o cosmético for considerado também um medicamento*, pode-se citar os ingredientes ativos em uma lista à parte, antes da lista de ingredientes “comuns”.
- Se o ingrediente for protegido por sigilo comercial, pode-se mencionar ao final da lista “other ingredients”
*se não me engano, a legislação americana trata alguns produtos que no Brasil são classificados como cosméticos de grau 2 (possuem indicação específica e requer comprovação de segurança e eficácia) como medicamentos isentos de prescrição médica. Alguém me corrija se eu estiver errada.
Considerando-se uma rotulagem que aplique todas exceções, a lista poderia ser dividida em 3 blocos:
- 1º bloco: Ingredientes que não são corantes e que se encontram em concentração acima de 1%, listados em ordem descrescente.
- 2º bloco: Ingredientes que não são corantes e que se encontram em concentrações de até 1%, listados em qualquer ordem.
- 3º bloco: corantes, listados em qualquer ordem.
Como nem todas as exceções precisam ser consideradas, isso abre a possibilidade de diversas formas de se escrever uma lista de ingrediente e ainda assim estar de acordo com as normas do FDA.
Eu poderia prolongar o assunto com exemplos de variações (quem tiver curiosidade, no link para as normas há alguns), mas acho que deu para entender o espírito da coisa, certo? A listagem de ingredientes em cosméticos não é algo tão certinho e rígido como costumam dizer por aí. No Brasil, nem ordem específica precisa ter e, mesmo em produtos importados ou nacionais cuja lista se baseia em uma legislação que determina a tal ordem decrescente (no exemplo, FDA), existem exceções que permitem uma certa flexibilidade até certo ponto.